Dando continuidade a postagem que começou com uma entrevista com o cantor e agora apresentador China, nesta postagem entra em cena a coluna "Leia..." um espaço dedicado a literatura e discussão de textos jornalísticos, crônicas, contos, romances. Para abrilhantar ainda mais essa postagem entraremos em contato com um conto "Feliz Aniversário" de Clarice Lispector, retirado do livro de contos "Laços de Família".
Clarice Lispector
Clarice Lispector |
- Minha última leitura de Clarice Lispector foi o livro de contos “Laços de Família”. São treze contos centrados, tematicamente, no aprisionamento dos indivíduos através dos “laços de família”. Homens, mulheres, adultos ou crianças pouco a pouco o cotidiano dos personagem vai-se desnudando como um ambiente falsamente estável, em que vidas aparentemente sólidas se desestabilizam de súbito.
Situando-se:
Neste conto uma velha senhora faz aniversário e uma festa familiar é organizada. Todos os filhos, noras, genros e cunhados se encontram e, pouco a pouco, as divergências e hostilidades que há entre eles começam a aparecer. A figura da velha aniversariante, desboca e rude na sua fraqueza, vai pondo a nu a inimizade e hipocrisia que há entre familiares, que, no final da festa, saem da casa como se estivessem fugindo.
Acompanhe a leitura
através dos excertos:
A família foi pouco a
pouco chegando. Os que vieram de Olaria estavam muito bem vestidos
por que a visita significava ao mesmo tempo um passeio a Copacabana.
A nora de Olaria apareceu de azul-marinho, com enfeite de “paetês”
e um drapeado disfarçando a barriga sem cinta […] e esta vinha
com seu melhor vestido para mostrar que não precisava de nenhum
deles, acompanhada dos três filhos: duas meninas já de peito
nascendo enfantilizadas em babados cor-de-rosa e anáguas engomadas,
e o menino acovardado pelo terno novo e pela gravata. […] depois
veio a nora de Ipanema com dois netos e a babá. O marido viria
depois[...] ficaram a nora de Olaria empertigada com seus filhos de
coração inquieto ao lado; a nora de Ipanema em fila oposta das
cadeiras fingindo ocupar-se com o bebê para não encarar a
concunhada de Olaria; a babá ociosa e uniformizada, com boca aberta.
[In: Lispector, Clarice. Laços de Família,pg38. Ed. Rocco, 1998.]
[…] e a cabeceira da
mesa grande a aniversariante que fazia hoje oitenta e nove anos.
[Zilda] arrumara a casa cedo, enchera-a de guardanapos de papel
colorido e copos de
papelão alusivos à
data, espalhara balões sugados pelo teto em alguns dos quais estava
escrito “Happy Birthday!”, em outros “Feliz Aniversário!”.
[In: Lispector, Clarice. Laços de Família, Pg39. Ed. Rocco, 1998]
[…] quando a nora de
Ipanema pensou que não suportaria nem um segundo mais a situação
de estar sentada defronte da concunhada de Olaria – que cheia das
ofensas passadas não via um motivo para desfitar desafiadora a nora
de Ipanema – entraram enfim José e a família [ In: Lispector,
Clarice. Laços de Família, Pg39. Ed. Rocco, 1998]
Alguns não lhe haviam
trazido presente nenhum […] nada que a própria aniversariante
pudesse realmente aproveitar constituindo assim uma economia: a dona
da casa guardava os presentes, amarga, irônica.
O ponche, Zilda suava,
nenhuma cunhada ajudou propriamente, […] ninguém se lembrou de que
ninguém havia contribuído com uma caixa de fósforos sequer os para
a comida da festa que ela, Zilda, servia como uma escrava, os pés
exaustos e o coração revoltado.
[...] Eles se mexiam agitados, rindo, a sua família. E ela era a mãe de todos. E se de repente não se ergueu, como um morto se levanta devagar e obriga mudez e terror, aos vivos, a aniversariante ficou mais dura na cadeira, e mais alta. [...] Como?! como tendo sido forte pudera dar à luz aqueles seres opacos, com braços moles e rostos ansiosos? [...] o tronco fora bom. Mas dera aqueles azedos e infelizes frutos, sem capacidade de sequer para uma boa ideia.
As pessoas ficaram sentadas benevolentes. Algumas com a atenção voltada para dentro de si, à espera de alguma coisa a dizer. outras vazias e expectrantes, com um sorriso amável, o estômago cheio daquelas porcarias que não alimentavam mas tiravam a fome.
- Tenho que ir. disse pertubada uma das noras levantado-se e sacudindo os farelos da saia. Vários se ergueram sorrindo. A aniversariante recebeu um beijo cauteloso de cada um como se sua pele fosse uma armadilha.
- No ano que vem nos veremos diante do bolo aceso! esclareceu melhor o filho Manoel.
- Não sou surda! disse a aniversariante rude, acarinahda. Os filhos se olharam rindo, vexados, felizes. a coisa tinha dado certo. As crianças foram saindo alegres, com o apetite estragado
Enquanto isso, lá em cima, sobre escadas e contingências, estava a aniversariante sentada à cabeceira da mesa, erecta, definitiva, maior do que ela mesma. será que hoje não vai ter jantar, meditava ela. A morte era seu mistério.
[In; Lispector, Clarice. Laços de Família, pg 41. Ed. Rocco, 1998.]
Até a próxima postagem com o "Ouça..." , Marcelo Camelo, " Toque Dela".
@acarnot